sexta-feira, 19 de novembro de 2010

'HISTÓRIA DE UMA BIBLIOTECA VIVA'

HISTÓRIA DE UMA BIBLIOTECA VIVA 

Era uma vez, em Roma, um comerciante rico que se chamava Itelus. Contam-se maravilhas das suas fabulosas riquezas. O seu palácio era tão vasto que nele teriam cabido todos os habitantes da cidade. O seu palácio era tão vasto que nele teriam cabido todos os habitantes da cidade. Reunia todos os dias, à mesa trezentas pessoas escolhidas entre os cidadão mais ilustres e mais cultos. 

Não havia só uma mesa em casa de Itelus; havia trinta, todas cobertas de magníficas toalhas bordadas a ouro. 

Itelus dava aos seus convidados os mais finos cozinhados, mas, nesse tempo, não se ofereciam aos convidados só pratos escolhidos: era preciso dar-lhes também os prazeres de uma conversa espirituosa.

“... A ITELUS NADA FALTAVA, EXCEPTO A INSTRUÇÃO” 

Ora, a Itelus nada faltava, excepto a instrução. Mal sabia ler. As pessoas que aceitavam os seus convites com prazer riam dele à socapa. 

Era-lhe impossível sustentar uma conversa à mesa, e se, por acaso, conseguisse que lhe dessem atenção, reparava que os convidados reprimiam a custo os seus sorrisos. 

Não podia suportar semelhante coisa. Mas era demasiado preguiçoso para estar muito tempo a ler um livro e não estava habituado a maçar-se. Itelus pensou muito tempo na maneira de remediar o caso e, finalmente, achou o que lhe era preciso. 

GRANDE ALEGRIA PARA ITELUS POSSUIR UMA BIBLIOTECA VIVA

 Ordenou ao mordomo que escolhesse, entre os seus numerosos escravos, duzentos dos mais inteligentes e mais instruídos. Cada um deles devia aprender um certo livro de cor. Por exemplo, a Ilíada, a Odisseia, etc. 

Foi um trabalhão para o mordomo, que teve muitas vezes de castigar os escravos antes de ter podido satisfazer os desejos do patrão. Mas, quando chegou a bom resultado, foi uma grande alegria para Itelus possuir uma biblioteca viva. 

ITELUS ESTAVA ENCANTADO 

À mesa, quando chegava a hora da conversa, bastava fazer sinal ao mordomo e da fila silenciosa de escravos, de pé, encostada à parede, destacava-se um homem que recitava a passagem adequada. Os escravos tinham o nome dos livros que sabiam de cor, um chamava-se Odisseia, outro Ilíada, outro ainda Eneida, etc., etc. …

 Itelus estava encantado. Toda a gente em Roma falava da sua biblioteca viva; nunca se tinha visto semelhante coisa. Mas isto não podia durar, e num belo dia um incidente fez troçar do milionário ignorante a cidade em peso. 

Depois do jantar, a conversa recaiu, como sempre, sobre toda a espécie de assuntos de literatura. Falava-se da maneira como os homens da antiguidade organizavam as festas.

 – Conheço uma passagem célebre da Ilíada sobre esse assunto – disse Itelus fazendo sinal ao mordomo. 

 MAS … 

Mas este caiu de joelhos e murmurou com voz embargada de medo:
 – Perdoai-me, senhor, o Ilíada hoje está com dores de estômago. 
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in Iline, M., O Homem e o Livro, Lisboa, Cosmos, 1947. 
Nota 1) os subtítulos foram introduzidos no texto original. 
Nota 2) Texto publicado com a colaboração voluntariosa de N.N.

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