sábado, 11 de dezembro de 2010

... muito provavelmente Porque era sábado (Vinicius de Moraes - o dia da criação)


Foto: Marcos Renkert


O dia da criação, Vinicius de Moraes
(…)

Há a perspectiva do domingo 
Porque hoje é sábado 
 


III 
 

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, 
ó Sexto Dia da Criação. 
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas 
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra 
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra 
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. 
Na verdade, o homem não era necessário 
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como 
as plantas, imovelmente e nunca saciada 
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. 
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias 
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa 
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos 
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas 
em queda invisível na 
terra. 
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes 
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia 
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo 
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda 
e missa de 
sétimo dia. 
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das 
águas em núpcias 
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio 
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula. 
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos 
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas 
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade 
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo 
E para não ficar com as vastas mãos abanando 
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança 
Possivelmente, isto é, muito provavelmente 
Porque era sábado.

Vinicius de Moraes, O dia da criação (excerto), Jornal de Poesia aqui

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